1) Porque está a Arábia Saudita a enviar aviões para bombardear os rebeldes houthis do Iémen?
A resposta politicamente correta é que os sauditas foram em socorro do presidente Abd Rabbuh Mandour Hadi, que na sequência da Primavera Árabe aproveitou a saída do ditador Ali Saleh, no poder há três décadas, para se fazer eleger em 2012. E é verdade que Hadi estava a ser vítima de uma aliança entre os rebeldes houthis e tropas fiéis a Ali Saleh, ao ponto de ter fugido de Sanah, a capital, e procurado abrigo em Adén, de onde foi levado para a Arábia Saudita pois o avanço inimigo era imparável. Mas a verdadeira razão da intervenção saudita é impedir que os houthis, aliados do Irão, controlem um país estratégico no flanco sul do reino.
2) Que teme a Arábia Saudita do Irão?
Sauditas e iranianos são rivais geopolíticos, que tentam, cada um, dominar o Médio Oriente. Neste momento, os aliados do Irão estão a ser bem sucedidos em vários países: o Hezbollah é superinfluente no Líbano, o exército de Bashar al-Assad resiste na Síria e no Iraque os partidos próximos do Irão controlam o governo. Se os houthis, apoiados pelo Irão também, dominassem todo o Iémen, os sauditas teriam razão para se sentirem cercados e ameaçados.
3) Quais as razões da rivalidade entre os líderes de Riade e de Teerão?
A família real saudita é guardiã das duas cidades mais sagradas do Islão, Meca e Medina, e usam isso como forma de legitimar as aspirações a chefiar os 1.500 milhões de muçulmanos espalhados pelo mundo. Mas os ayatollahs que mandam no Irão desde a Revolução Islâmica de 1979 também se sentem líderes do Islão. Além disso, os sauditas são muçulmanos sunitas e os iranianos xiitas e há uma velha história de rivalidade entre estes dois ramos do Islão.
4) Quão velha é essa rivalidade? Tem séculos?
Não só tem séculos, como ultrapassa os mil anos. Vem dos primeiros tempos do Islão, quando ainda se discutia quem deveria suceder ao profeta Maomé. E a batalha de Kerbala, em 680, é decisiva para se perceber o que opõe hoje sunitas e xiitas, sauditas e iranianos.
5) O que se passou em Kerbala, há mais de 1.300 anos?
Em Kerbala, cidade hoje situada no Iraque, não longe do rio Eufrates, enfrentaram-se as tropas dos Omíadas e os partidários de Hussein, filho de Ali, o quarto califa, e neto de Maomé por via da sua filha Fátima. Os Omíadas, que tinham capital em Damasco, na Síria, tinham aproveitado a morte de Ali, primo do profeta além de genro, para criarem uma dinastia de califas e assim acabarem com a tradição que dava a liderança dos muçulmanos aos companheiros de Maomé. Mas uma parte dos muçulmanos continuava a acreditar que a família do profeta deveria ter protagonismo e assim Hussein foi combater para reivindicar direitos. O embate teve lugar a 10 de outubro de 680, ou 10 de Muharram de 61 segundo o calendário islâmico, e Hussein foi martirizado, assim como vários outros elementos masculinos da família. Nesse dia concretizou-se a separação entre sunitas, hoje 90 por cento dos muçulmanos, e xiitas, apenas 10 por cento.
6) Mas se são ultraminoritários os xiitas, como pode o Irão ser um rival dos sauditas?
Com 80 milhões de habitantes, quase todos xiitas, o Irão é poderoso no quadro do Médio Oriente. Além disso, conta como vizinho um Iraque também de maioria xiita. É preciso também ter em conta que os xiitas são já a maior comunidade no dividido Líbano e que na Síria, mesmo minoritários, há décadas que controlam o poder graças a um ramo esotérico, os alauitas.
7) Quer então dizer que os houthis também são xiitas e que se controlarem o Iémen podem ser um grande trunfo para o Irão?
Exatamente. Os houthis são xiitas, tal como um terço dos iemenitas. E podem com o seu sucesso contaminar os xiitas que vivem na província saudita vizinha da fronteira.
8) Há xiitas na Arábia Saudita?
Sim, uns cinco por cento da população do reino. E são numerosos nas regiões petrolíferas, o que sempre preocupou os sauditas caso houvesse algum tipo de revolta separatista.
9) Sunismo e xiismo são muito diferentes?
Pode-se fazer a mesma pergunta em relação ao catolicismo e a ortodoxia ou em relação ao catolicismo e o protestantismo. E a resposta tem de ser que partilham o essencial, que no caso do Islão são os chamados cinco pilares: crença que só há um Deus e Maomé é o seu profeta, cinco orações diárias, respeito do jejum no mês do Ramadão, peregrinação uma vez na vida a Meca e praticar a caridade. Mas o xiismo é mais aberto na interpretação do Alcorão. O xiismo tem também um clero hierarquizado, com os ayatollas no topo.
10) Foi agora divulgado um estudo que dá os muçulmanos a ultrapassarem os cristãos em número de crentes daqui a meio século. Isso alterará a proporção entre sunitas e xiitas?
Pouco. Os cristãos, que hoje serão talvez 2.500 milhões, vão ser ultrapassados porque têm menos filhos que os muçulmanos, não por haver conversões em massa. E a explosão demográfica afeta tanto países de maioria sunita como xiita.
11) No ataque aos houthis, a Arábia Saudita conta com o apoio de dez países muçulmanos, entre os quais o Egito e a Jordânia. São todos de maioria sunita?
Sim, com uma exceção, o Bahrein, cuja população é de maioria xiita mas tem um rei sunita. Aliás, quando houve os protestos da Primavera Árabe em 2011, que levaram à queda de Ben Ali na Tunísia, Hosni Mubarak no Egito e Muammar Kadhafi na Líbia, também a posição do monarca bahreini ficou frágil. Mas logo a Arábia Saudita enviou tropas para a ilha para travar aquilo que considerou uma manipulação feita pelos iranianos.
12) Quem é mais forte, Arábia Saudita ou Irão?
Com 30 milhões perante os 80 milhões de habitantes do Irão, a Arábia Saudita parece frágil, mas tem a seu favor as receitas do petróleo, que lhe permitiram no ano passado ser o maior importador mundial de armamento. Conta ainda com a velha aliança com os Estados Unidos da América (EUA). Já o Irão, muito afetado por sanções internacionais, espera agora que o acordo sobre o seu projeto nuclear permita sair do isolamento e recuperar a economia. Sobre a relação de forças, é preciso também ter em conta o peso dos aliados regionais de cada um, com os dos sauditas a serem mais numerosos e os dos iranianos mais eficazes.
13) É possível ver nesta rivalidade também uma luta entre árabes e persas?
De certo modo sim, pois o Irão orgulha-se de ser o herdeiro do império persa que há 2.500 anos enfrentava os gregos e criou uma magnífica civilização. E se cedeu à islamização, nunca adotou o árabe em lugar do farsi e no século XVI a dinastia Safávida terá mesmo imposto o xiismo como religião do Estado para marcar essa diferença. Por seu lado, os sauditas reivindicam-se os sucessores das tribos beduínas que estiveram entre os primeiros companheiros de Maomé quando, no século VII, nasceu o Islão. No fundo, os mais autênticos dos árabes.
14) De que forma a emergência do Estado Islâmico afeta esta disputa entre sauditas e iranianos?
De uma maneira que ainda está por perceber na totalidade. De início, a Arábia Saudita, tal como as outras monarquias do Golfo Pérsico, financiaram todos os grupos que na Síria se revoltavam contra a ditadura de al-Assad. Entre esses grupos extremistas sunitas, em guerra contra um poder controlado pelos alaouitas, estavam filiais da Al-Qaeda, como a Frente Al-Nusra, e também organizações menos conhecidas, como um tal Estado Islâmico no Iraque e Levante, que viria a encurtar o nome ao mesmo tempo que alargava as suas ambições a todo o Médio Oriente. Quando as atrocidades do Estado Islâmico se tornaram conhecidas, os EUA formaram uma coligação internacional para o atacar e a Arábia Saudita apressou-se a juntar, até porque começou a perceber que os jihadistas mais cedo ou mais tarde se iriam voltar contra os antigos financiadores e a própria dinastia dos Saud poderia ser posta em causa. Ao mesmo tempo, com os xiitas entre os principais alvos do Estado Islâmico na Síria e no Iraque, o Irão mostrou-se interessado em apoiar a ação dos EUA e estes aceitaram. Sem dúvida, essa cooperação também ajudou ao diálogo sobre o nuclear iraniano, agora com os americanos dispostos a aceitar um projeto civil desde que haja inspeções internacionais que previnam os ayatollahs de mudarem de ideia e produzirem a bomba. Estes últimos desenvolvimentos desagradam à Arábia Saudita, pois não só dão protagonismo internacional ao Irão, como o libertam do peso das sanções económicas.
15) Sabe-se que os cristãos são ameaçados nesse Médio Oriente onde nasceu o seu credo e onde há ainda comunidades que falam o aramaico, a língua de Jesus. Neste duelo sunitas-xiitas como se posicionam?
Como o jihadismo é feito por extremistas sunitas, e tanto cristãos como xiitas são os alvos, nota-se uma aliança de interesses. Isso é evidente no Líbano e também na Síria, onde as minorias apoiam o regime pois este sempre as protegeu. Que resultado terá esta aliança entre cristãos do Médio Oriente e xiitas para os crentes em Jesus é difícil de prever. Para já trata-se de sobrevivência.
*jornalista do Diário de Notícias