Em situações de guerra, os olhos veem sombras ea verdade … – Diário de Notícias

Janeiro de 1991. A Direção do DN tinha-me enviado ao Bahrein para – dito muito pomposamente – “cobrir” a Guerra do Golfo, que fora originada pela invasão e ocupação do Koweit pelas tropas iraquianas de Saddam Hussein. Mais tarde, este conflito ficou numerado como a Primeira Guerra do Golfo, já que se lhe seguiu, uma década depois, um prolongado ataque punitivo ao Iraque na sequência da destruição das Torres Gémeas de Nova Iorque. Foi coisa de triste memória, desencadeada pelas ânsias populistas e eleitorais de uma tríade de históricos medíocres, protagonizada por George W. Bush, Tony Blair e José María Aznar, borboleteados pelo lacaio mesureiro José Manuel Durão Barroso, uma vil e desprezível mancha no orgulho português, padecente crónico do mal de carnes de obedecer para o qual a ciência ainda não encontrou cura para ele nem alívio para nós.

Cobrir a Guerra do Golfo! O mais que poderia fazer seria contar histórias do que os meus olhos vissem, com alcance limitado, e apontamentos de vidas e sentimentos concretos que pudesse descobrir. É isso que pode fazer um “enviado especial” e muitas vezes, ao ouvir a rádio em direto, lamento não se ter ainda inventado a cadeira hertziana que o repórter no terreno possa arremessar à cabeça do pivô que, na tranquilidade do estúdio, e há tanto tempo sentado que já tem o traseiro em forma de pera, pergunta com a maior naturalidade às três da manhã locais: “Então, como é que está a reagir a população da cidade tal aos bombardeamentos da noite? Que dizem as pessoas na rua?”

Três lições colhi dessa “cobertura” da Guerra do Golfo. A primeira e mais sólida foi a de que a minha melhor investigação – de que resultou uma notícia de que, até prova em contrário, terá sido scoop mundial – poderia ter sido realizada em Lisboa, na redação, com apoio de mapas e telefones. Poucos dias após o início do conflito armado, Saddam mandou rebentar os poços petrolíferos marinhos na orla costeira do Koweit, originando uma ameaçadora maré negra. Logo nesse dia, as principais estações televisivas mundiais, com a CNN à cabeça, que imortalizaram esta guerra como a primeira (falsamente) transmitida em direto, difundiam imagens de aves marinhas afogadas em crude ou em esforços desesperados para subirem aos molhes dos atracadouros. As autoridades do Bahrein seguiam, através de fotografias aéreas ou de satélite, a progressão da mancha de óleo, procurando soluções para defender as suas praias. Mas a mancha avançava muito lentamente, pelo que ocorria a pergunta: não havendo jornalistas ocidentais nas praias do Koweit, como eram possíveis aquelas imagens? Um telefonema a um oficial das relações públicas militares norte-americanas, em Dahran, no Norte da Arábia Saudita, bastou para se saber que eram imagens de arquivo de uma guerra anterior, entre o Irão e o Iraque, sensivelmente no mesmo teatro do Golfo e com idêntico derrame de petróleo bruto. As imagens, afinal, faziam parte de uma estratégia de propaganda, para puxar à lágrima e à indignação dos ecologistas norte-americanos que, até à véspera, não aceitavam nem por mais uma que our boys fossem morrer a terras distantes por questiúnculas entre humanos: agora, para salvar passarocos e águas do mar – fogo à peça!

A segunda aprendizagem teve a ver com a capacidade de o homem conviver com a iminência da morte, o que me explicou como se pôde viver cerca de vinte anos em Beirute com explosões diárias por toda a cidade, sem que isso interrompesse o quotidiano de quem tinha de ir trabalhar de manhã e voltar à noite. Logo que começou o conflito armado e voaram scuds iraquianos para os países em volta e os patriots norte-americanos em sentido contrário, as autoridades do Bahrein mandaram evacuar o soukh (mercado tradicional) da capital, Manama. Ao terceiro dia, fui ao local e vi tendas abertas. Um comerciante explicou-me que já tinha percebido como seria a guerra: “apenas” mísseis, nada de “armas pequenas”. É que atrás da “arma pequena” está a mão e a pontaria de um inimigo, enquanto um míssil cai onde cai, tanto no soukh como na casa do comerciante, ao alvedrio de Alá. E como o que não tem remédio remediado está – retome-se a vida normal, que não hão de ser só as salamandras a darem-se bem com o fogo!…

A terceira verificação – e isto resolve a questão de saber se a “cobertura” foi feita a partir do Bahrein ou em plena Bagdad sob fogo – prende-se com aquilo que não se vê quando se está perto. Certa noite, encontrava-me tranquilamente a jantar num restaurante com imigrantes portugueses em Manama quando começámos a irritar-nos porque os empregados, em lugar de nos atenderem, estavam à janela, em amena conferência sobre o que viam no exterior. No dia seguinte, soubemos que estiveram a olhar para o único scud lançado pelo Iraque sobre o Bahrein e que havia caído e explodido no mar entre cinco e dez quilómetros de onde estávamos… Grande “enviado especial”, que deixei passar um scud debaixo do nariz!

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