Nas semanas que se seguiram à execução do clérigo xiita Nimr Baqr Al-Nimr pela Arábia Saudita, uma série de protestos eclodiu no mundo árabe. Al-Nimr era voz da minoria xiita do país e crítico constante da monarquia saudita. Sua execução causou mal estar na região e levou ao rompimento das relações diplomáticas – já bastante complicadas – entre a Arábia Saudita e o Irã. Outros países seguiram o exemplo e cortaram laços com Teerã. No Bahrein, os protestos contra os sauditas foram duramente reprimidos pelo governo. De acordo com ativistas do país, a repressão policial contou com um ingrediente brasileiro: pela internet, eles publicaram fotos de bombas de gás lacrimogêneo do Brasil empregado pela polícia nas manifestações do dia 2 de janeiro.
Em dois anos, Brasil aumenta em 7 vezes venda de armas leves para Arábia Saudita
As imagens foram divulgadas no Twitter pela ativista Fatima AlHalwachi. Nelas, as cápsulas de gás mostram uma logomarca que parece pertencer à Condor – tecnologias não letais, uma empresa brasileira sediada em Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro. As imagens não trazem informações sobre o lote do artefato, nem data de fabricação. Os pictogramas na lateral do tubo metálico indicam que se trata de um “projeto de emissão quíntupla” de gás lacrimogêneo, uma arma que, de acordo com a empresa, requer treinamento para ser usada e que não deve ser disparada diretamente contra o corpo de uma pessoa – sob o risco de causar mortes. De acordo com a Condor, o artigo é seguro se usado adequadamente.
A Guerra Fria entre Arábia Saudita e Irã
“O governo do Bahrein usa gás lacrimogêneo brasileiro para reprimir protestos pacíficos no país desde 2011”, disse Fátima por email a ÉPOCA. “Em algumas situações, os disparos são feitos em direção aos corpos dos manifestantes. Já houve mortes”, diz a ativista. Em 2011, o Bahrein foi um dos países que viveram os protestos da Primavera Árabe. Os manifestantes bareinitas se opunham à monarquia do rei Hamad bin Isa Al Khalifa e cobravam maiores liberdades democráticas. Já naquele ano, ativistas foram à internet denunciar o uso inadequado do armamento brasileiro por tropas do país. Em reportagem de ÉPOCA em 2011, a Condor afirmou que o governo do Bahrein não era um de seus compradores. Ainda em 2012, o noticiário internacional divulgou a morte de um bebê cinco dias após inalar gás lacrimogêneo. A substância fora fabricada no Brasil.
Em nova nota enviada a ÉPOCA, a Condor diz que não pode divulgar o destino do armamento que vende, uma vez que seus contratos são protegidos por cláusulas de confidencialidade. Por isso, não é possível afirmar que a empresa brasileira vendeu os gás lacrimogêneo diretamente para o governo bareinita. A empresa também afirma que, apesar das queixas, é positivo o uso de armamento não letal para conter protestos: “Consideramos um alento que esses governos adotem armamentos não letais, diferentemente de algumas nações, que ao contrário, tem à disposição apenas equipamentos feitos para matar”, afirmou a Condor. Reproduzimos a nota da empresa integralmente ao pé desta página.
Arábia Saudita rompe relações diplomáticas com o Irã
Nos protestos do dia 2 deste ano, Fátima diz que os manifestantes marchavam de forma pacífica pelas ruas da ilha de Sitra, na província central do Bahrein, quando foram atacados pela polícia: “Algumas cápsulas de gás foram disparadas em direção às casas”, diz ela. Ao inalar o gás, diz ela, alguns manifestantes vomitaram. Outros, desmaiaram.
Gás lacrimôgeneo “made in Brazil” é usado na repressão no Bahrein, dizem ativistas
A venda de armamento e munições para o Bahrein entra em conflito com tratados internacionais de que o Brasil é signatário. As bombas de gás lacrimogêneo entram na categoria de munições. Em 2013, o Brasil assinou o Tratado sobre Comércio de Armas (ATT), que tenta moralizar a venda desses artigos no mundo. Pelos termos do documento, os países signatários ficam proibidos de vender armamento para governos com histórico de desrespeito aos direitos humanos, ou quando existe a suspeita de que esses produtos sejam utilizados para cometer crimes de guerra. A ideia é de que o país que vende é, parcialmente, responsável pelo uso da arma comercializada.
O Bahrein é uma pequena ilha do Golfo Pérsico e um dos principais aliados regionais da Arábia Saudita. É também conhecido pelo seu regime autoritário e de desrespeito aos direitos humanos. Organismos internacionais, como o Human Rights Watch, acusam o Bahrein de violência excessiva contra manifestantes, de fazer prisões arbitrárias e de, em alguns casos, torturar opositores do regime – uma monarquia sunita que limita a liberdade e a participação política da minoria xiita no país. Fátima, a ativista que publicou as fotos, e sua família já foram vítimas desse autoritarismo.
Fátima é filha de Khalil Halwachi, um engenheiro elétrico bareinita educado em Londres e que, por 14 anos, foi professor universitário em Estocolmo. Halwachi é também membro da Sociedade de Ação Islâmica, um dos principais partidos de oposição ao governo do Bahrein. Em 2014, o professor foi preso sob a acusação de manter armas ilegalmente em casa. Segundo ele e seus filhos, as provas para sua prisão foram plantadas. Desde então, Halwachi está preso. Deve ser julgado no dia 21 de janeiro.
Apesar do histórico de abusos, o Bahrein é cliente do Brasil. As vendas de armas leves e munições brasileiras para o país aumentaram em sete vezes desde 2012 – os valores das exportações pularam de US$810 mil em 2012 para US$2,5 milhões em 2015. Em 2015, o Bahrein figurou como o 16º principal destino das armas leves brasileiras, de acordo com dados do Ministério do Desenvolvimento. ÉPOCA falou sobre a venda de armas do Brasil para países do Oriente Médio em reportagem do dia 11/01.
Confira abaixo a íntegra da nota enviada pela Condor:
“Por obrigações contratuais de confidencialidade, a Condor não pode informar detalhes dos seus fornecimentos. Todos as nossas negociações são controladas e autorizadas pelo Ministério da Defesa e pelo Ministério das Relações Exteriores e seus órgãos correlatos.
Consideramos um alento que esses governos adotem armamentos não letais, diferentemente de algumas nações, que ao contrário, tem à disposição apenas equipamentos feitos para matar.
As tecnologias não letais possibilitam aos agentes da lei o emprego proporcional da força, reduzindo sensivelmente os casos onde seja necessário o uso de armas de fogo. Dessa forma a ação militar e policial encontra meios para pautar-se pelo respeito aos Direitos Humanos e à preservação da vida, ao mesmo tempo em que pode proteger a integridade física dos seus quadros e da população civil.
Ou seja, o objetivo das armas não letais é justamente evitar que os Direitos Humanos sejam desrespeitados. Por isso mesmo este tipo de armamento costuma ser utilizado em missões de paz e constitui exceção aos embargos de armas impostos pela ONU”.
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