Maryam Al Khawaja: “No Golfo, vidas valem menos que petróleo”

Entrevista Maryam Al Khawaja  (Foto: Susannah Ireland/eyevine)

Condenada à prisão em seu país natal, o Bahrein, Maryam Al Khawaja, de 27 anos, é a única pessoa de sua família que não está presa ou em vias de sê-lo. Isso porque a ativista vive em exílio, na Dinamarca. O Bahrein é uma pequena ilha, vizinha da Arábia Saudita e do Catar. Vive uma onda de protestos populares desde 2011, como parte do levante conhecido como Primavera Árabe, que alcançou ao menos nove países. O pai de Maryam, Abdulhadi Al Khawaja, levou-a para a Dinamarca quando ela era criança e, mesmo no exterior, manteve-se como um crítico vocal do governo (a ilha é governada desde o século XVIII pela mesma família). Ele voltou ao país natal com a família em 2002 e está preso desde 2011. Maryam, que estudou literatura inglesa, retornou à Dinamarca e dirige o Centro para Direitos Humanos no Golfo (GCHR, na sigla em inglês). A ONG treina defensores de direitos humanos nos países do Golfo Pérsico e na Síria. Maryam teme por eles, porque acha que a comunidade internacional se omite e tem posição ambígua em relação às ditaduras na região.

ÉPOCA – Faz três anos que começaram os protestos e a derrubada de regimes que receberiam o nome de Primavera Árabe. Mas o Egito vive sob ditadura militar e há guerra civil na Síria e na Líbia. A Primavera fracassou?
Maryam Al Khawaja –
Não acredito que seja um fracasso. O que estamos vendo, por pior que seja, é parte da mudança. Você não pode esperar que países transitem de ditaduras para democracias florescentes em dois ou três anos. Não funciona assim. A França não passou de monarquia para democracia tranquilamente. Passou por uma ditadura militar, depois de conflitos sangrentos. É algo que vimos sucessivas vezes na história. As coisas pioram, muito, antes de melhorar, infelizmente. Não deveria ser assim. As pessoas não deveriam ter de pagar com suas vidas e seu sustento para conseguir liberdade e democracia. Infelizmente, muitas vezes, esse é o preço.

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ÉPOCA – A comunidade internacional tem algum papel a desempenhar nessa mudança?
Maryam –
Vários fatores agravam a situação. Um é a habilidade das ditaduras em se manter, porque não ligam para o custo humano disso. E outro é o apoio dos aliados a essas ditaduras. Na Síria, Bashar Al Assad se mantém no poder com apoio do Irã e da Rússia. As ditaduras no Egito e no Bahrein recebem apoio do Ocidente. As alianças permitem que esses regimes continuem a fazer o que fazem. O regime do Bahrein não duraria meses, talvez nem semanas, não fosse o apoio dos países ocidentais. Considero isso um fracasso na implementação de mecanismos internacionais que impeçam massacres e genocídios. Penso em Ruanda (país onde, em 1994, cerca de 800 mil pessoas foram mortas por compatriotas, num massacre étnico) e em todas as outras situações que levaram muita gente a dizer: “Nunca mais”. Eu digo: o “nunca mais” acontece todo dia, o tempo todo. A lei humanitária internacional é aplicada quando alguém escolhe a violência como forma de fazer mudança. Mas, quando uma pessoa escolhe o caminho da não violência, não há nada que a proteja. Falamos que a não violência é bela, que amamos Nelson Mandela e Martin Luther King, mas não fazemos nada que proteja os que seguem os mesmos passos. Assistimos às mortes dia após dia, dizendo: “Ah, gostaríamos de fazer algo”.  É um fracasso não haver reação internacional contra essas atrocidades e crimes de guerra.

ÉPOCA – Como o apoio de democracias ocidentais ajuda a manter ditaduras?
Maryam –
Dou um exemplo. A Arábia Saudita implementa boa parte do mesmo sistema jurídico que o Estado Islâmico (EI). Por que o Ocidente reage ao EI com bombardeios e com a Arábia Saudita faz acordos comerciais, econômicos e militares? Como faz sentido recrutar a Arábia Saudita e o Bahrein para combater o EI? Eles têm a mesma mentalidade!

ÉPOCA – A senhora já afirmou que a vida parece valer menos em alguns países. O que quis dizer?
Maryam –
A vida de um bareinita não vale tanto quanto um barril de petróleo que sai da Arábia Saudita. Se você olha, por exemplo, o massacre na revista Charlie Hebdo, na França. Foi chamado de massacre (morreram 12 pessoas). E houve a reação que vimos, líderes de todo o mundo indo a Paris participar de uma marcha. Vimos isso no Quênia, depois do massacre dos (148) estudantes? Não. Quando os sauditas decidiram liderar uma guerra contra o Iêmen, matar civis, bombardear aeroportos e escolas, o Ocidente os apoiou. Quando vemos ataques como o do Charlie Hebdo, a reação deveria ser apoiar mais direitos humanos e democracia. Não deveria ser “agora, que esses fanáticos estão vindo ao nosso país e atacando nossa população, devemos apoiar os opressores ainda mais, apoiar os ditadores, porque eles nos mantêm a salvo”. Sou cidadã europeia, vivo na Dinamarca. É porque o Ocidente apoia esses opressores e ditadores que existe esse tipo de ataque. Quando se apoiar direitos humanos e democracia, esses ataques vão parar. Pessoas se tornam violentas e extremistas quando não têm espaço para se expressar, quando você retira a opção de protestos pacíficos. Se o Ocidente se importa com terrorismo, a abordagem correta não é bombardear pessoas. A abordagem correta seria parar de apoiar ditadores e parar de atacar com drones pessoas dentro de suas casas, o que as torna mais suscetíveis a se juntar a organizações como al-Qaeda e Estado Islâmico. O EI é terrível e precisamos combatê-lo, mas dizer que vamos tolerar (o ditador sírio) Assad para isso não é o jeito correto de fazê-lo.

 As mulheres do Estado islâmico

ÉPOCA – A senhora foi presa e ficou detida por três semanas em 2014, em sua última visita ao Bahrein. Seu pai foi preso em 2011 e sentenciado à prisão perpétua. Seu tio está preso e sua irmã foi condenada à prisão. Como é fazer oposição a um governo assim?
Maryam –
Quando meu pai estava sendo torturado, ele era prioritário para mim. Agora ele está numa situação relativamente estável, e minha prioridade são os casos mais severos. Ainda temos protestos todos os dias e casas de cidadãos sendo atacadas no meio da noite. Temos tortura sistemática. A probabilidade de você ser torturado, caso seja preso, é altíssima, incluindo abuso psicológico e sexual. Não importa se você é adulto ou criança. As condições das prisões são terríveis. Meu pai é um entre 3 mil presos políticos. Ele me disse que conseguia ouvir os gritos de outros prisioneiros sendo torturados. Os guardas mantêm presos no pátio das prisões por dias, por semanas, sem sombra, com temperaturas de até 40 graus. Também não permitem que usem o banheiro nem tomem banho. Os prisioneiros fazem suas necessidades no pátio. Os guardas usam isso para torturá-los, fazendo-os rolar nos excrementos. O sistema judicial não funciona. A Human Rights Watch disse bem: “No Bahrein, não há um sistema judicial disfuncional. Há um sistema de injustiça que funciona muito bem”. Nada é baseado em provas, apenas em confissões extraídas sob tortura e decisões políticas. (Em 2014) Fui agredida por quatro policiais. Não iniciei a agressão. Os registros médicos provaram que fui agredida e meu ombro foi severamente machucado. Quando chegamos ao tribunal, fui apontada como culpada por agredir as policiais.

ÉPOCA – Como o governo do Bahrein usa a força contra manifestantes?
Maryam –
Usam-se gás lacrimogêneo e espingardas de caça, que disparam cargas de pequenas esferas de metal. Temos fotos de pessoas com suas costas cobertas com essas pequenas balas. Uma delas tinha 80 balas no corpo.  Tivemos muitos casos de gente morrendo com gás lacrimogêneo, por sufocação ou pelo impacto direto da cápsula. A forma como o gás lacrimogêneo é usado no Bahrein não tem precedentes. É comum ver fumaça branca cobrindo uma vila inteira. O governo pune toda a área, não só os manifestantes. Temos vídeos que registram mais de 100 disparos de bombas de gás em cinco minutos. Imagine a mesma população sendo sufocada com gás todos os dias, por anos.

ÉPOCA – Há esperança de mudanças em seu país?
Maryam –
Sempre há esperança. Não acredito que a mudança acontecerá durante minha vida, pode acontecer depois que eu me for. Mas gosto de acreditar que muito do que fazemos agora ajuda a pavimentar o caminho para que as gerações que venham depois não tenham de pagar o mesmo preço que estamos pagando. Não quero ver minhas sobrinhas e meu sobrinho na prisão, torturados ou mortos, lutando pelos mesmos direitos que estamos lutando agora. Esse seria o sucesso: ser capaz de proteger as próximas gerações. Meu pai e o pai dele, minha mãe e a mãe dela lutaram por liberdade e direitos por muito tempo. Só espero que não aconteça a mesma coisa com os que vierem depois de nós. 

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